domingo, 23 de maio de 2010

Descaso


Lembro-me perfeitamente daquelas flores rosadas, tendo o teto branco ao fundo, realizando uma parábola e no ar e caindo nas minhas mãos céticas. Foi aí que começou toda a catástrofre. Ao contrário do que diz a tradição, foi ali que todos os meus problemas começaram. Eu as trouxe para casa e coloquei num vaso com água gelada e açúcar, mas essas flores poséticas nem se importaram. Juro que a culpa não foi minha, até perguntei na ocasião o que lhes parecia melhor "açúcar ou adoçante?", mas de nada adiantou. Elas padeciam irreversivelmente a cada batida do ponteiro dos segundos do relógio-herança-do-meu-tio-avô.
Assim começou o meu fim. A direção da vida passou a girar ao contrário. E quando dormia tinha sempre o mesmo pesadelo: flores estragadas e ensanguentadas caíam sobre mim, inundavam minhas pernas e me enjoava aquele cheiro de vermelho ferrugem.
E então eu acordava extremamente angustiada.
Depois eu mesma passei a sangrar constantemente. Não como sangram os poetas, os amores ou qualquer coisa metafórica. Era sangue-lamento de fêmea e que não obedecia ciclo lunar, solar, nenhuma lógica aparente regia essa correnteza. Escorria pelas minhas pernas e deixava um rastro como os pesadelos anunciaram. E então essa dor se tornou cíclica, nessa parte já não lembro onde ela começava, nem como, nem que horas. Meus olhos se apagaram, não enxergava mais o meu tempo-herança-perdida.
As pessoas quase já não me comprimentavam, comentavam entre si o quanto eu estava desgastada, cansada, agoniada, acabada, e no meio disso tudo um dia ouvi "Louca! Olha a doida!". Essa mentalidade interiorana limitada e retrógrada, as pessoas não entendiam minha metafísica de canteiros! Me apropriei do jardim da maior praça que ficava no centro da cidade. Passava grande parte do tempo molhando, conversando e cantando com as plantas. As favoritas eram as cirandas, eu via como elas sorriam colorindo para mim. E isso me acalmava tanto que dei para passar os dias e as noites entre begônias, azaléias e marias-sem-vergonha.
Já não comia quase nada, bebia água quando chovia, algo em mim havia se modificado. Fui drão, brotei em meio aquela dor que me gelava a alma, torturava-me os sonhos. Tudo que em mim era firmeza penetrou na terra, virou raiz. Fotossintetizei o que era carbono e tormento, fumaça e lamento, lançei o que era vida no ar e agora namoro com as viuvinhas pequeninas e pintadinhas que pousam na ponta do meu nariz.

Um comentário:

Água Doce disse...

nossa, gostei tanto...