terça-feira, 17 de abril de 2007

Miss Catastrophique

* para Ana

Nascer é esbarrar no mundo:
é assim que começa.

Trazia consigo gracioso desastre de nascença.
Tudo ia ao chão: jarros, chaves, varais, vassouras.
Ela apenas sorria e tudo, desengonçado, a perdoava.

Em dias de profunda distração topava nas pessoas,
que não conseguiam conter a perplexidade
ao virem surgir apòs a topada
confetes, pàssaros e botões
do espaço antes vazio.

Ela apenas sorria.

Ainda outro dia chocou-se com o florista,
o que causou a aparição de centenas de bolhas de sabão.
Outra vez num rapaz que estava a passear com o cachorro
e que saiu enlouquecido atràs das borboletas amarelas ainda zonzas.

Ela sorria
e o sorriso era o que havia de mais catastròfico no mundo.
Derrubava muralhas
Abria portas cerradas
Revoltava mares não-navegados.
Então as almas marmorizadas percebiam o desastre:
seus pedaços inutilizados
entupindo os bueiros em dias de chuva
.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Doril


Não me venham falar de dores.
Dores não são dizíveis,
Nem sequer perceptiveis!
São no máximo silenciosamente humilhantes e corrosivas.

Não apunhalem, nem corroam as palavras:
Dor é lexema que assinou contrato.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

pré-meditação


Reflexologia confusa
Filosofia bastarda
Desinteresse recalcado
Banalidade banhada a ouro.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Apresento a pagina em branco


"Burocratas travestidos de poetas

Sem-graças travestidos de sérios

Anões travestidos de crianças

Complacentes travestidos de justos

Jingles travestidos de rock

Estórias travestidas de cinema

Chatos travestidos de coitados

Passivos travestidos de pacatos

Medo travestido de senso

Censores travestidos de sensores

Palavras travestidas de sentido

Palavras caladas travestidas de silêncio

Obscuros travestidos de complexos

Bois travestidos de touros

Fraquezas travestidas de virtudes

Bagaços travestidos de polpa

Bagos travestidos de cérebros

Celas travestidas de lares

Paisanas travestidos de drogados

Lobos travestidos de cordeiros

Pedantes travestidos de cultos

Egos travestidos de eros

Lerdos travestidos de zen

Burrice travestida de citações

água travestida de chuva

aquário travestido de tevê

água travestida de vinho

água solta apagando o afago do fogo

água mole sem pedra dura

água parada onde estagnam os impulsos

água que turva as lentes e enferruja as lâminas

água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções

insípida, amorfa, inodora, incolor

água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky

água onde não há seca

água onde não há sede

água em abundância

água em excesso

água em palavras. (...)"



Arnaldo Antunes in
Tudos