quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Cafeína


O calor do sol inundou o lilás das persianas
e a luz beijando meu sono
amanheceu mihas pálpebras.
Meu corpo lento procurou suas mãos
sedentas, delicadas
no abismo da minha cama.

Minha cabeça de leoa indócil
Minha camiseta pelo avesso
descombinando com a calcinha
e a saudade que se abateu sobre mim.

Resolvi coar seus olhares
"Eu via a luz da luz do preto dos seus olhos" *
beber seu gosto
A água fervia e seu cheiro
Negro, nêgo, neguinho
em sua ausência me entorpecia

Sentada no chão frio de xadrez
bebi o que me restou de você
numa manhã nublada
num dia de loucos
num tempo de nada.

*
trecho de "cego com cego" de Tom Zé e Wisnik



terça-feira, 2 de outubro de 2007

Devaneio de 5 centavos


Os dias ensolarados de Agosto anunciam os dias azuis de Setembro. Entendi enquanto meus pés atravessavam uma faixa de pedestres e olhava para o seu sorriso multicor.
As vezes coisas estranhas acontecem. Ainda bem.
O que quero são fragmentos de canções, objetos esquecidos e beijos atormentados. Quero a profundidade da insignificância. Há quem não entenda meu delírio, minha alucinação descompassada. Meu tesouro é um colar de pérolas de bolhas de sabão.
A magia do banal me absorve completamente como uma criança vencida por um torrão de açúcar. Há de ter engenho micro-caleidoscópico para entender a arte da magia cotidiana.

(Então você, sem pretensão nenhuma, nem de nada, me arrasta para o Plano Inclinado. Simples assim: ao invés do elevador o plano. Eu entro me sento, você sussurra bobagens fundamentais para que eu sorrir. E meu corpo ver passar como uma nuvem aquela parte da cidade, aquela cabine de vidro, aquela cena do filme de Araripe Júnior.)

Felicidade besta, e por isso mesmo boa e bonita. Alegria de andar de roda-gigante, de acertar o papel no cesto, de ver a primeira estrela no céu. Tento em vão decifrar seu rosto mas previsões não importam. Racionalmente você jamais me daria um presente de 5 centavos.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Desconfigurado.....

Roman Moderne - Maison de mon rêve
Fernando Figueiredo

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Poemas não são para serem publicados


Poemas não são para serem publicados
poemas são Drag Queens
rolando piteiras em puteiros
ou somos nós,
poetas velhos de caras borradas
poetas de cinco centavos
Poemas não são para serem publicados
Poemas são para serem escritos
às vezes rasgados
às vezes guardados

Podem ser confessionais,
imorais de vanguarda
Podem ser apenas
a voz humílima do guarda
Podem ser criança
Mas em Geral
são sem esperança
de serem publicados
Poemas custam caro
e não fazem o mesmo efeito de um choque
não fazem o efeito de um baseado
Poemas não servem para trepar
nem nada

Nem sequer tente publicar seus poemas
faça-os voltar calados às gavetas
Com eles ninguém se meta
Dormirão como dormem os drogados:
tristes, gelados, pesados
mas serão sempre únicos
Sempre ineditamente mediúnicos
Sempre salvos das graças das prebendas
Sempre coisas pudendas (ainda que sujos)
Poemas, sempre úmidos
Noviços, fim de feira
maus de venda e de vida.
Não são nem mesmo um incentivo à leitura,
pois quem vai ler linhas quebradas
oriundas de alma idem?
Renata Pallottini

terça-feira, 10 de julho de 2007

Não entendo


Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
Clarice Lispector

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Aprendiz de Feiticeiro


Era um velho muito velho que morava numa casa de palha
na beira da casa ele tinha velami mikiçangui, mikiçangui velami
no seu alanguê .

O tempo apagou as lembranças de minha cabeça.
Antes eu sabia das coisas que lembrava, mas agora tudo o que sei é o que não lembro.
Não lembro, por exemplo, de ter conhecido um homem de cabelos muito longos como os de uma santa, e que tinham a cor de um entardecer tranquilo. Os seus olhos contavam cinco anos e sorriam.
Trazia dependurado uma flauta, uma gaita, um pandeiro, castanholas, uma rabeca e uma caixinha de fósforos. Quando dormia cantava músicas em mandarim, vezinquando roncava poesia.
Não lembro de um poema ele roncou certa noite e acordou toda a vila do Cruzeiro:
Para enxergar as coisas sem feitio, é preciso não saber nada.
É preciso entrar em estado de árvore.
É preciso entrar em estado de palavra.
Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas sem feitio.

Ele não tinha nome. Chamavam aprendiz de feiticeiro e ele chacoalhava sua caixinha de fósforos e fazia uma batucada que só terminava no outro dia.
Ele me ensinou a chegar no começo. O começo é o esquecimento e tudo o que não lembro, mas que ao mesmo tempo é tudo o que sei e que guardo de mais valioso. O nada é o barro do qual se modelam todas as coisas. O elefante e o gabiru.
Depois de alguns anos sua barba já alcançava os joelhos quando um pássaro verde com o peito estufadinho em azul resolveu se alojar e fazer um ninho. No início ele ficou muito sério, não dizia palavra, o passarinhotambém não cantava. Depois foi uma algazarra. Dentro de um mês ele tinha cinco ninhos emaranhados naquela barba imensa e eu acabei perdendo a conta diante da reprodução animada dos cantantes.
Como já disse só sei do que não me lembro. E isso é tão calmo e tranquilo que quase já não recordo exatamente o que escuto ou a textura do que penso. Mas é tão lindo seu moço: quando eu fecho os olhos vejo a cor das palavras.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Tédio com sal


Ò mestre da falta de mistério! “Ò” ao que eu não aguento. E o buraco continua sendo mais embaixo. Essa nudez desconciliada de qualquer propòsito e fundamento. Que mais? Para o bom entendedor um piscar de olhos basta. Ui.
Mas é que não funciona:

« me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto
que no fim eu conserto
e para o fim me reservo
e se verá que estou certo
e se verá que tem jeitoE se verá que está feito
que pelo torto fiz direito
que quem faz cesto faz cento
se não guio não lamento
pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento »*

E o que funciona maquinalmente não tem alma, jà dizia minha avò: a pressa é inimiga da perfeição do imperfeito! Ela ouviu isso de um peixe eremita que viveu por uns tempos no rio São Francisco. Estranhamente ele era muito “ar”, sabe? Queria ter nascido gente pra morar no rio de oxigênio. Talvez seja por isso que os peixes se arremecem para fora dos aquàrios, e as pessoas se arremecem às prisões, de ferro, de dor, de desejo. Não importa do quê, é prisão de qualquer forma.

Tudo o que sei é que não entendo e isso em nada me aflige, e pois, se te afeta, seja afetado sozinho.



* Trecho de Circuladô de fulô (Caetano Veloso/ Haroldo de Campos)
Flornoasfalto

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Desterritorialização semestral


Fim de semestre é muito complicado... seis disciplinas desabando em minha cabeça: a palatalização das consoantes intervocálicas está me matando, o potencial funcional das palavras me desafia a troco de nada, o pirotécnico Zacarias está assistindo a um espetáculo de fogos com Murilo Rubião. O que Mário de Andrade entende de amor para achá-lo intransitivo, gente?
Minha cabeça está mais parecendo um triste satélite artificial a girar sem sentir. As coisas me cutucam para perguntar as horas...e Túlio ainda não me emprestou "Alice no país das maravilhas" mas me deu "O labirinto do fauno". Carlito Vieira Dias está salvando minhas noite da agonia acadêmica. Dois ensaios e um romance: várias conclusões e nada escrito.
Não estranhem minha cabeça vista por esse ângulo. No final eu sempre sobrevivo, afinal dançar um bom forró é o segredo do aquilibrio! ( Freud sabia disso?)
Vou pintar os dedinhos dos pés!

terça-feira, 5 de junho de 2007

Baba Alapalá


Avô é Filósofo, é Santo, Duende, Profeta.
Curandeiro, Pajé, Raiz, Raio de Tupã.
Avô é Orixá.



sábado, 26 de maio de 2007

Sonolência


Seu corpo é todo noite

mas você carrega o amanhecer nos olhos

que apontam para o que eu não vejo.

È todo labirinto,

mùsicas desconhecidas,

chuva contra os vidros da janela.

Abre as portas, portões e gradis de todos os mundos,

existentes e não-existentes,

carregando as chaves tortas das falhas dos enigmas.


Não saberia descrever sua composição...

catavento, lembranças, ventos do norte,

uma canoa subindo o rio, enigmas numéricos.

Fração de beleza. Polinômio de tristeza.

As àguas que sobem nas épocas de chuva, voltam ao nivel normal no inicio de janeiro.

Quando dorme com o que sonha? Qual o sabor de suas làgrimas?
Através da saliva sinto o gosto de sua dor:

Não é amarga


Flornoasafalto

quinta-feira, 24 de maio de 2007

A Genialidade da Multidão

Há bastante deslealdade, ódio,
violência,
Absurdo no ser humano
comum
Para suprir qualquer exército em qualquer
dia.
E O Melhor No Assassinato São Aqueles
Que Pregam Contra Ele.
E O Melhor No Ódio São Aqueles
Que Pregam AMOR
E O MELHOR NA GUERRA
--FINALMENTE--SÃO AQUELES QUE
PREGAM
PAZ


Aqueles Que Pregam DEUS
PRECISAM de Deus
Aqueles Que Pregam PAZ
Não têm paz.
AQUELES QUE PREGAM AMOR
NÃO TÊM AMOR
CUIDADO COM OS PREGADORES
Cuidados com os Sabedores.
Cuidado
Com Aqueles Que
Estão SEMPRE
LENDO
LIVROS

Cuidado Com Aqueles Que Detestam
Pobreza Ou Que São Orgulhosos Dela

CUIDADO Com Aqueles Que Elogiam Fácil
Porque Eles Precisam De ELOGIOS De Volta

CUIDADO Com Aqueles Que Censuram Fácil:
Eles Têm Medo Daquilo Que
Não Conhecem

Cuidado Com Aqueles Que Procuram Constantes
Multidões; Eles Não São Nada
Sozinhos

Cuidado
Com O Homem Comum
Com A Mulher Comum
CUIDADO Com O Amor Deles

O Amor Deles É Comum, Procura
O Comum
Mas Há Genialidade Em Seu Ódio
Há Bastante Genialidade Em Seu
Ódio Para Matar Você, Para Matar
Qualquer Um.

Sem Esperar Solidão
Sem Entender Solidão
Eles Tentarão Destruir
Qualquer Coisa
Que Seja Diferente
Deles Mesmos

Incapazes
De Criar Arte
Eles Não Irão
Compreender Arte

Eles Vão Considerar Sua Falha
Como Criadores
Apenas Como Uma Falha
Do Mundo

Incapazes De Amar Completamente
Eles Vão ACREDITAR Que Seu Amor É
Incompleto
E ELES VÃO ODIAR
VOCÊ

E Seu Ódio Será Perfeito
Como Um Diamante Brilhante
Como Uma Faca
Como Uma Montanha
COMO UM TIGRE
COMO Cicuta

Sua Mais Fina
ARTE

"The Genious of the Crowd", Charles Bukowski

domingo, 20 de maio de 2007

Águas de Março (?)

Morro em Março, sem dores e sem culpa,
Como quem tem sede pela vida.
Despedaço-me cíclica e lentamente
Me atiro a barrancos
Ateio fogo às minhas pobres certezas
Enveneno meus amores
Rou minhas unhas e
arranco delicadamente os fios de cabelo
para que Abril faça renascer tudo outra vez.

Quando essa velha angústia me abate
Não derramo uma única lágrima
Não me escapa um oitavo de sorriso.
Me desconheço
Me esvazio
Me como
Me vomito
Me despindo por dentro
Fugindo de qualquer pesadelo esquecido.
Decifrando os segredos truncados
calados e tranquilos
morro mais de uma vez.

terça-feira, 15 de maio de 2007

A Insustentável Leveza do Ser


Minha menina, o dia está tão claro e lúcido. Os varais coloridos no quintal e o cheiro da manhã me lembram algo que não vivi. Você fica belamente ingênua com esse vestido florido, você é linda de qualquer jeito. Deixe-me cantar uma canção. Sabia que a música é feita de silêncio?

Andei pensando em filhos. Que tal 12? A gente se esforça para que saiam 6 meninos e 6 meninas, para que no São João façamos quadrilha ao redor de uma imensa fogueira. Porque ri?? Acha que apenas as mulheres querem ter filhos? Venha cà. Vamos tomar banho? Estou com vontade de beijar todos os dedinhos de seu pé. Nunca aprendi a andar a cavalo. O que lhe aflige se estou aqui? Podemos dançar tango até o amanhecer.

Minha querida, o tempo passa tão depressa...logo irá a levar tônus do seu corpo jovem mas jamais o brilhante de seus olhos. O que eu não faço por você? O que você quer que eu faça? Pode rir, eu digo e você não acredita. Pode rir porque amo seu sorriso.

Oh, minha vida! Espalhe flores pela casa. Solte seus cabelos. Tire sua roupa para mim e me encare com seus seios sérios. Deixe a porta aberta, meu bem, para que a revoada de pássaros possa voar entre os espaços sem fim.

*A Insustentàvel Leveza do Ser (The Unbearable Lightness of Being) é um livro publicado em 1984 por Milan Kundera, foi adaptado ao cinema pelo diretor Philip kaufman.




domingo, 13 de maio de 2007

Luftmenschen*


Invoque seus temores e lhes cante mùsicas de dormir, para que se percam nos sonhos de outrem.
Convide a sua angùstia para caminhar na beira da praia.
Beije sua fraqueza, entrelaçando lascivamente a sua lingua na dela.
Toque a valsa vienense para seus rancores empedrados.
Visite, e leve flores, para sua intolerância que definha num asilo.
Tome um café com seu fracasso.
Faça um strip-tease mais que obsceno para seu complexo de decência.
Escancare as portas e janelas da casa da mesquinhez.
Compre um algodão doce para sua covardia.
Acene docemente para a morte.
E quando o vento sopra, engravidando as virginais cortinas brancas, os olhos deles brilham num sorriso quase diabòlico.
Deslizam pelo chão de azulejos frios
E o agora acontece em suspenso com calafrios de eternidade:
Um deles compete com o vento.
* homens feitos de vento


A Dona dos 7 Sonhos

As coisas que não existem são mais bonitas." (Felisdônio)

Olhando o rosto de Luzia me lembrei da saudade que, meio sem sentir, sentia. Me lembrei de quanto tempo havia passado. Me lembrei de como, em absolutamente nada, eu havia mudado.

Ela, com aqueles mesmos olhinhos iluminados, capazes de desnortear insetos como eu, pareceu achar graça do meu transtorno e me serviu um café num ritual que me pareceu bastante nostàlgico: me contou do sabugueiro que andava muito deprimido a ponto de não lhe responder o "Bom dia!" que lhe dava a cada manhã; do casal de canàrios que havia se aninhado voluntariamente no quintal; da bicicleta que gostaria de comprar para passear na praia à noite. Talvez viajasse para Cuba, caso contràrio, derrubaria a casa para ter o prazer de construì-la outra vez.

Eu poderia passar dias, sem nem beber um gole de àgua, apenas escutando Luzia falar sobre as coisas mais desimportantes como se fossem sagradas. Cada movimento, cada gesto, era movido por uma paixão por "não sei o quê". Sua boca mastigava o princìpio da existência. A ùnica coisa que despontava em minha cabeça eram 7 sonhos que eu havia tido durante a noite, todos embaraçados e fragmentados em minha mente.

" O Tempo é o pai do esquecimento e o dono das lembranças.", ela me disse e eu, como de costume, nada entendi mas não me importei. È que as vezes ela falava umas coisas e eu não entendia se ela era a louca ou se eu era o burro. Mas de qualquer forma todo cético era frustrado pelas palavras que saìam da boca-de-fruta-madura de Luzia.
Estava tão perdido entre meus sonhos labirinticos que nem questionei como o sabugueiro me chamava de "idiooooota" enquanto bocejava esticando os galhos de flores miùdas.
- Como idiota??
-Idiota, simples assim. ELA é a dona dos 7 sonhos! E não me aborreça porque ela acorda e nem me dà mais "Bom dia!"!!

Estupefato, olhei para Luzia, quietinha, me espiando por cima da xìcara de esmalte branco. E então lembrei... tudo explodia dentro da minha cabeça, numa irradiação de cores e de calor. Ela habitava em mim, mesmo enquanto eu dormia, bagunçava e enfeitava meus sonhos. E tudo, mesmo quando evitava, me levava em direção à ela, e eu era sua vìtima feliz, seu prisioneiro onìrico. Sob o véu da noite eu a despia, beijava, lambia, num estado de nirvana e neblina. Entendi tudo sem nem concatenar nada. E tudo que eu pensava, queria e sonhava em dizer a ela naufragava no café, jà frio e amargo, entre meus dentes.

Flornoasfalto

terça-feira, 17 de abril de 2007

Miss Catastrophique

* para Ana

Nascer é esbarrar no mundo:
é assim que começa.

Trazia consigo gracioso desastre de nascença.
Tudo ia ao chão: jarros, chaves, varais, vassouras.
Ela apenas sorria e tudo, desengonçado, a perdoava.

Em dias de profunda distração topava nas pessoas,
que não conseguiam conter a perplexidade
ao virem surgir apòs a topada
confetes, pàssaros e botões
do espaço antes vazio.

Ela apenas sorria.

Ainda outro dia chocou-se com o florista,
o que causou a aparição de centenas de bolhas de sabão.
Outra vez num rapaz que estava a passear com o cachorro
e que saiu enlouquecido atràs das borboletas amarelas ainda zonzas.

Ela sorria
e o sorriso era o que havia de mais catastròfico no mundo.
Derrubava muralhas
Abria portas cerradas
Revoltava mares não-navegados.
Então as almas marmorizadas percebiam o desastre:
seus pedaços inutilizados
entupindo os bueiros em dias de chuva
.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Doril


Não me venham falar de dores.
Dores não são dizíveis,
Nem sequer perceptiveis!
São no máximo silenciosamente humilhantes e corrosivas.

Não apunhalem, nem corroam as palavras:
Dor é lexema que assinou contrato.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

pré-meditação


Reflexologia confusa
Filosofia bastarda
Desinteresse recalcado
Banalidade banhada a ouro.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Apresento a pagina em branco


"Burocratas travestidos de poetas

Sem-graças travestidos de sérios

Anões travestidos de crianças

Complacentes travestidos de justos

Jingles travestidos de rock

Estórias travestidas de cinema

Chatos travestidos de coitados

Passivos travestidos de pacatos

Medo travestido de senso

Censores travestidos de sensores

Palavras travestidas de sentido

Palavras caladas travestidas de silêncio

Obscuros travestidos de complexos

Bois travestidos de touros

Fraquezas travestidas de virtudes

Bagaços travestidos de polpa

Bagos travestidos de cérebros

Celas travestidas de lares

Paisanas travestidos de drogados

Lobos travestidos de cordeiros

Pedantes travestidos de cultos

Egos travestidos de eros

Lerdos travestidos de zen

Burrice travestida de citações

água travestida de chuva

aquário travestido de tevê

água travestida de vinho

água solta apagando o afago do fogo

água mole sem pedra dura

água parada onde estagnam os impulsos

água que turva as lentes e enferruja as lâminas

água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções

insípida, amorfa, inodora, incolor

água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky

água onde não há seca

água onde não há sede

água em abundância

água em excesso

água em palavras. (...)"



Arnaldo Antunes in
Tudos