Era um velho muito velho que morava numa casa de palha
na beira da casa ele tinha velami mikiçangui, mikiçangui velami
no seu alanguê .
O tempo apagou as lembranças de minha cabeça.
Antes eu sabia das coisas que lembrava, mas agora tudo o que sei é o que não lembro.
Não lembro, por exemplo, de ter conhecido um homem de cabelos muito longos como os de uma santa, e que tinham a cor de um entardecer tranquilo. Os seus olhos contavam cinco anos e sorriam.
Trazia dependurado uma flauta, uma gaita, um pandeiro, castanholas, uma rabeca e uma caixinha de fósforos. Quando dormia cantava músicas em mandarim, vezinquando roncava poesia.
Não lembro de um poema ele roncou certa noite e acordou toda a vila do Cruzeiro:
Para enxergar as coisas sem feitio, é preciso não saber nada.
É preciso entrar em estado de árvore.
É preciso entrar em estado de palavra.
Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas sem feitio.
Ele não tinha nome. Chamavam aprendiz de feiticeiro e ele chacoalhava sua caixinha de fósforos e fazia uma batucada que só terminava no outro dia.
Ele me ensinou a chegar no começo. O começo é o esquecimento e tudo o que não lembro, mas que ao mesmo tempo é tudo o que sei e que guardo de mais valioso. O nada é o barro do qual se modelam todas as coisas. O elefante e o gabiru.
Depois de alguns anos sua barba já alcançava os joelhos quando um pássaro verde com o peito estufadinho em azul resolveu se alojar e fazer um ninho. No início ele ficou muito sério, não dizia palavra, o passarinhotambém não cantava. Depois foi uma algazarra. Dentro de um mês ele tinha cinco ninhos emaranhados naquela barba imensa e eu acabei perdendo a conta diante da reprodução animada dos cantantes.
Como já disse só sei do que não me lembro. E isso é tão calmo e tranquilo que quase já não recordo exatamente o que escuto ou a textura do que penso. Mas é tão lindo seu moço: quando eu fecho os olhos vejo a cor das palavras.